ANTICORPO. UMA PARÓDIA DO IMPÉRIO RISÍVEL
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​ANTICORPO
LUCA ARGEL

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Dentro do organismo de um ser humano vivem mais bactérias do que células que o compõem. A grande maioria, é claro, convive conosco em harmonia, e até nos ajudam. Já contra aquelas que podem nos fazer mal, temos uma boa arma de defesa: anticorpos. Para cada agente de infecção, nosso corpo é capaz de produzir um anticorpo específico, através de uma mecânica curiosa: o anticorpo imita uma parte da composição molecular do seu inimigo, tal como o reflexo de um espelho — igual, mas invertido — e assim encaixa-se nele, para enfim destruí-o ou neutralizá-lo. O anticorpo, digamos, é uma paródia da doença. Este ANTICORPO não é diferente.

Do blablablá dos discursos enaltecedores do império colonial, da forma exaustiva com que se repete a sua lengalenga, das imagens e histórias que ele produziu, Patrícia Lino criou também uma eficiente arma neutralizadora: um objeto poético. Eu não poderia imaginar melhor forma para esta arma. Explico o porquê.

A imposição da língua portuguesa nas colônias foi uma estratégia consciente de complementar e aprofundar a dominação sobre os povos nativos. João de Barros, o intelectual português do século XVI que melhor defendeu esta ideia, conseguiu convencer o rei a adotá-la com a seguintemáxima: “A língua caminha junto com o império”.

​Ora, se o império que existiu para fora está hoje em ruínas, o império que existe para dentro, para dentro de cada um de nós, não foi completamente desmontado — e a língua ainda caminha com ele. Portanto, se quisermos nos curar dele e construir no seu lugar algo melhor — um anti-império — com qual língua deveremos caminhar? Com uma anti-língua? Não sei se tal coisa existe, mas, se existir, certamente não andará muito longe daquilo a que chamamos poesia.
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